Falar sobre nós mesmos nunca é uma tarefa simples. Fechar os olhos para o exterior e mirar somente o interno, nossos defeitos e qualidades, quem nós somos de verdade. Muitas vezes, dói e sangra. Hoje, tentarei fazer isso. Aliás, venho fazendo há alguns anos e devo admitir: os resultados têm sido muito interessantes. Certa vez, comentei que mergulhar muito fundo significava encontrar duas coisas, pré-sal ou monstros pré-históricos. Em outras palavras, encontrar coisas boas ou ruins sobre nossa personalidade, nosso caráter, nossas atitudes. Curiosamente, encontrei muito mais pré-sal do que criaturas. Cresci muito mais do que sangrei.
Escrevi todo esse preâmbulo porque o tema da coluna de hoje é o Dia Internacional da Osteogênese Imperfeita, minha doença rara. Para falar sobre ela, serei forçado a dar um pequeno mergulho interno. Precisarei me enxergar, não somente como jornalista que escreve neste espaço, mas como uma pessoa com uma doença genética extremamente rara, responsável por mais de cem fraturas em meus 48 anos de vida. A Osteogênese Imperfeita, também conhecida como Doença dos Ossos de Vidro ou, simplesmente, OI, é causada pela má formação do colágeno, o tecido formador do osso. Assim, nascemos com um esqueleto extremamente frágil e quebradiço a qualquer impacto ou susto.
O primeiro monstrinho que vou trazer à superfície são as cem fraturas que sofri até os 18 anos. É um número alarmante, sem dúvida. mas verdadeiro. Qualquer pessoa que tenha OI vai confirmar, talvez não essa mesma quantidade, mas algo parecido. Além das fraturas, existem outras características típicas da OI: baixa estatura, esclerótica azulada, ossos curvos, problemas nos dentes e surdez. Eu tenho alguns desses problemas. Tenho baixa estatura, meus dentes são muito ruins, preciso usar aparelhos auditivos, meus ossos longos têm curvaturas acentuadas e não ando, nunca andei. Desde meus 11 anos, faço uso de uma cadeira de rodas. Atualmente, uma cadeira motorizada, que me deu um nível de autonomia e liberdade nunca antes experimentada. A facilidade de me locomover na cadeira motorizada me elevou a um nível muito alto de participação na vida familiar. Sem cansaço, sem esforço e sem demora, posso ir aonde eu quero e fazer o que eu quero e necessito.
Estes são alguns dos efeitos da Osteogênese Imperfeita em minha vida. Contudo, gostaria de abordar os aspectos invisíveis, aqueles que somente os portadores da OI sabem que existem. Durante 40 anos, eu jamais dediquei tempo para observá-los. Eu só olhava os efeitos visíveis a todos. Wiliam Shakespeare disse, certa vez, que “Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia” e eu afirmo que, na vida de uma pessoa com deficiência, há muito mais coisas que a vã sabedoria popular pode imaginar. Minhas maiores dores não são nos meus ossos, mas nos efeitos colaterais de uma doença sem cura e sem razão para existir. O que as limitações de uma doença desconhecida causam em uma pessoa? Como funciona a cabeça de uma criança que não pode correr, jogar bola ou brincar no quintal com os colegas? Como essa criança cresce e se torna adulto, temendo descer um batente?
Hoje, 06 de maio, Dia Internacional da Osteogênese Imperfeita, me dou conta de que, se eu tivesse começado a buscar essas respostas mais cedo, talvez eu fosse outra pessoa. O autoconhecimento é fundamental para todos nós. Precisamos saber quem somos, de onde viemos, para onde vamos e como chegamos onde estamos. Sim, eu sempre soube que era deficiente, sempre conheci o termo Osteogênese Imperfeita e também sempre soube das minhas limitações físicas. Contudo, só confrontei os efeitos causados por essas limitações físicas há poucos anos. Foram mais de quatro décadas sendo sabotado internamente pela OI, sem chances de defesa porque não sabia que isso acontecia. Quatro décadas sentindo medo sem entender as razões nem saber como combatê-los. Sem perceber a importância e como é libertador afirmar: Eu tenho medo.
O medo é um sentimento interessante. É poderoso e ardiloso porque é capaz de manipular nossas ações e pensamentos da maneira que desejar e ainda porque faz suas maquinações nas sombras, escondido. As cem fraturas já mencionadas fizeram crescer um medo absurdo de sofrer acidentes, quedas e pancadas. Não desço batentes nem rampas, de frente, não transito em terrenos irregulares, como areia, grama e pedras e sempre busco o seguro. Assim, paulatinamente, fui me enclausurando em meu apartamento. Sair de casa se tornou uma aventura das mais perigosas. Desta forma, cheguei à minha psicóloga. Eu precisava compreender esses processos e, certo dia, ela me perguntou qual a minha relação com a Osteogênese Imperfeita. Tal qual me perguntasse qual era meu nome, respondi, de pronto, que ela era minha inimiga. Juliana se assustou, sugeriu que ela fosse minha companheira e eu contra-ataquei que seríamos rivais.
A palavra companheira se tornou palatável, com o decorrer dos anos. Consigo aceitar os argumentos dela de que a OI estará sempre comigo, quer eu queira ou não. A OI me tirou inúmeras coisas, é verdade, mas me deu outras tantas. A Osteogênese forjou a formação do meu caráter, da minha personalidade e da minha visão de mundo. Eu sou quem eu sou, para bem ou para mal, por causa da Osteogênese. Não permito que ela seja minha característica mais proeminente, mas não a excluo mais. Ainda existem traços de rivalidade sim, mas o companheirismo ganha força a cada dia. Tenho muito chão para percorrer, mas já deixei muito terreno pra trás e este é um bom sentimento.