Sociedade adoecida agride um cadeirante e deseja a morte de um idoso

Papa Francisco luta contra a morte em um hospital de Roma e nas redes sociais do mundo todo, enquanto Marcelo Rubens Paiva é agredido de forma covarde, em São Paulo.
Marcelo Rubens Paiva sofre agressão covarde no desfile de blocos carnavalescos de rua, em São Paulo (Foto: UOL/SP)

O filme Ainda Estou Aqui, que concorre ao Oscar deste ano e já pauta deste espaço, volta ao centro do debate, agora por um motivo altamente negativo. O jornalista, escritor e músico, Marcelo Rubens Paiva, 61, autor do livro de mesmo nome, que deu origem ao filme, publicado em 2015, sofreu uma agressão física na tarde deste domingo, enquanto desfilava com sua cadeira de rodas no carnaval de rua de São Paulo. Marcelo é tetraplégico, daí a cadeira de rodas, e foi homenageado pelo Bloco Acadêmico do Baixo Augusta. Usando uma máscara com o rosto da atriz Fernanda Torres, foi atingido por uma lata de cerveja, arremessada da multidão, e por uma mochila, logo depois. Uma terceira agressão ocorreu quando um homem mostrou o dedo do meio para ele.

A obra Ainda Estou Aqui trata da experiência da família do ex-deputado Rubens Paiva e sua esposa, Eunice Paiva, pai e mãe de Marcelo, quando o parlamentar foi preso, torturado e assassinado pela Ditadura Militar do Brasil (1964-1985). Fernando Torres é a intérprete de Eunice Paiva no longa. A atriz venceu o Globo de Ouro, prêmio máximo da televisão norte-americana, na categoria de Melhor Atriz em Cinema – Drama, e concorre ao Oscar de Melhor Atriz. Desde que o filme atingiu o sucesso e reconhecimento internacional, denunciando a morte de Rubens Paiva e a violência do período ditatorial brasileiro, tanto o escritor quanto a atriz têm sido alvos de ofensas e agressões nas redes sociais e na vida prática.

Em resposta à agressão física de domingo, Marcelo publicou, nesta segunda-feira, no X (antigo Twitter), um trecho da música É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo, de Erasmo Carlos, lançada em 1971, canção que faz parte da trilha do filme Ainda Estou Aqui. O trecho diz o seguinte: “Eu cheguei de muito longe / E a viagem foi tão longa / E na minha caminhada / Obstáculo na estrada / Mas enfim aqui estou”. Marcelo esclareceu que não se feriu e afirmou não entender o por quê de ser agredido com uma lata de cerveja e uma mochila em um momento de diversão, como o carnaval. “Eu não entendi por que eu fui atacado. Jogar uma mochila na cara de porta-bandeira, cadeirante, que quer se divertir”, escreveu.

Aos 20 anos de idade, em 1979, Marcelo sofreu um acidente após saltar de uma pedra em um lago raso, um açude barrento em um sítio à beira da Rodovia dos Bandeirantes, em Campinas. O jovem universitário fraturou a quinta vértebra cervical, na altura do pescoço, e ficou tetraplégico. Em 1982, publicou o livro Feliz Ano Velho, em que conta sua história até aquele momento e fala de juventude, reabilitação, superação e reflexões sobre a vida. O livro se tornou o mais vendido da década de 80, ganhou vários prêmios, incluindo o Prêmio Jabuti de Literatura, virou peças de teatro e filme, em 1987, estrelado por Marcos Breda no papel principal.

Trago este assunto à coluna porque os rumos de parte da sociedade atual me preocupam bastante. Além da agressão sofrida por um homem de 61 anos, em uma cadeira de rodas e incapaz de se defender, pessoas que se autointitulam cristãs vão às redes sociais derramar seu ódio e expressar seu desejo de que o Papa Francisco morra. O líder da Igreja Católica está sofrendo com graves problemas respiratórios e sua vida corre sérios riscos. “Papa comunista tem que morrer”, “todo sofrimento do mundo é pouco para esta desgraça”, “espero que morra agonizando” e “vou festejar muito o dia em que este papa for para o inferno” são algumas das frases edificantes(?) publicadas. É, na verdade, uma gente nojenta, uma sociedade repugnante e apodrecida por dentro. O que leva alguém a desejar a morte de outra pessoa, um homem de 88 anos, que já está com os dias contados?

O Papa Francisco vem promovendo uma verdadeira revolução dentro da Igreja Católica, tirando a instituição da “Idade Média” em que vivia nos últimos trinta anos. A Igreja envelheceu e perdeu o rumo. Lá atrás, quando o Papa João Paulo I foi entronizado, estabeleceu-se uma esperança de que ele conduziria a Igreja a um período de modernidade. Contudo, isso durou somente 33 dias. Albino Luciani faleceu na madrugada de 28 de setembro de 1978. Teorias da conspiração deram conta de que sua morte não foi natural e de que seu papado havia sido encurtado porque ele ameaçava desnudar casos de corrupção dentro da Igreja. Depois dele, veio João Paulo II.

O polaco Karol Wojtyla enterrou a Igreja em um mar de atraso e conservadorismo ideológico, social e político. Durante quase 27 anos, fez a Igreja retroceder décadas na história, combatendo e punindo a Teologia da Libertação, seus praticantes, o uso de preservativos, a importância da mulher nos trabalhos religiosos, a existência do homossexualismo, etc. O alemão Bento XVI o sucedeu e foi o primeiro pontífice a renunciar ao cargo, sete anos após ser eleito. Tão retrógrado quanto João Paulo II, talvez tenha percebido que suas ideias não cabiam mais no nosso século.

O argentino Jorge Mario Bergoglio foi eleito no conclave de 2013, o primeiro Bispo de Roma oriundo da América do Sul e da Companhia de Jesus (jesuítas). Papa Francisco trouxe consigo o tão necessário sopro de modernidade à Igreja e os conceitos de simplicidade e humildade. Lentamente, deu ênfase à misericórdia de Deus, aumentou a visibilidade internacional como papa, a preocupação com os pobres e compromisso com o diálogo inter-religioso. Escolheu residir na casa de hóspedes Domus Sanctae Marthae, em vez de nos aposentos papais do Palácio Apostólico, como seus antecessores. Sustenta que a Igreja deve ser mais aberta e acolhedora. Francisco tem sempre uma palavra dura e firme contra o consumismo desenfreado, as guerras e os ataques das grandes potências ao clima. Certa vez, afirmou que a Igreja não precisa de fieis que vão às missas aos domingos e pecam durante a semana.

Será possível imaginar quem deseja tanto sua morte?

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