Sim, minorias também podem ser maus-caracteres

Não podemos cair na armadilha de acreditar que todos os membros das chamadas minorias são pessoas superiores e incapazes de atos de mau-caratismo.
Atriz espanhola Karla Sofia Gascón perdeu muito espaço na luta pelo Oscar 2025 por ter publicado tuítes racistas e islamofóbicos (Foto: Divulgação/CNN Brasil)

Os aficionados por cinema estão acompanhando, com enorme interesse e ansiedade, o desenrolar da campanha do filme Ainda Estou Aqui, que concorre ao Oscar 2025 de Melhor Filme e Melhor Filme em Língua Estrangeira, e de Fernanda Torres, concorrente à estatueta de Melhor Atriz. A filha da “dama dos palcos” brasileiros, Fernanda Montenegro, concorre, entre outras, com a atriz espanhola Karla Sofia Gascón, protagonista do filme Emília Pérez, também concorrente de Ainda Estou Aqui, nas duas categorias citadas acima.

Karla Sofia Gascón ganhou notoriedade por ser a primeira mulher abertamente transgênero indicada ao Oscar de Melhor Atriz. Nascida Juan Carlos Gascón, em Alcobendas, Espanha, a atriz de 52 anos despontou, nas bolsas de apostas norte-americanas como a favorita ao prêmio máximo do cinema dos Estados Unidos por sua performance em Emília Pérez. Contudo, uma série de matérias publicadas na imprensa especializada daquele país, nas últimas semanas, criou um verdadeiro tsunami no favoritismo da espanhola, ao ponto de fazer a Netflix, responsável pela produção e divulgação do filme, afastá-la das campanhas publicitárias de Emília Pérez.

A Variety, uma das principais publicações artísticas dos Estados Unidos, trouxe à tona uma série de postagens de Karla Sofia Gascón, entre 2019 e 2021, no Twitter, de cunhos extremamente racista e islamofóbico, além de criticar as políticas de inclusão da Academia Cinematográfica norte-americana, responsável pelo Oscar. A atriz chamou o islamismo de “foco de infecção para a humanidade” e questionou se o Oscar havia se tornado um “festival afro-coreano”, uma “manifestação Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam) ou o Dia Internacional da Mulher. As postagens, especialmente as críticas à Academia, seriam suficientes, segundo o crítico de cinema, Pablo Villaça, para afastar qualquer possibilidade de ela levar a estatueta para casa.

SEM BARREIRAS não é uma coluna de cinema nem eu sou crítico de arte. Assim, minha intenção ao trazer este assunto é discutir um outro tema, que surgiu a partir dele. Algumas pessoas se espantaram com o fato de Karla Sofia Gascón ser uma mulher transgênero e emitir opiniões preconceituosas. Faltariam a ela empatia, compaixão e solidariedade, quase como se a atriz fosse uma traidora dos movimentos sociais. Este é o tema que quero abordar. Antes de entrar mais fundo nele, cito outro exemplo: quando os Estados Unidos elegeram Barack Obama seu presidente, de 2009 a 2017, muito se falou das conquistas que o povo afrodescendente daquele país passaria a ter. Afinal de contas, Obama é um homem negro e, certamente, não esqueceria seus “irmãos de cor”.

Precisamos tomar cuidado com essas expectativas. Karla Sofia Gascón é uma mulher transgênero e Barack Obama é um homem negro, porém eles são seres humanos com personalidades, caráteres, visões de mundo e forma de se comportar diante das questões sociais únicas e não têm nenhuma obrigação, por sua condição de gênero e cor da pele, de se solidarizar com os demais. Não estou defendendo as atitudes dos dois, quero deixar claro. Apenas acredito que não temos o direito de criticá-los por fechar os olhos para temas que nos são caros. Lamento, porém não os julgo por pensar diferente de mim. Devemos tentar trazê-los para nosso lado e respeitar se eles optarem por ficar do lado de lá da fronteira. A pessoa negra nasce com o gene que determina a cor da pele, mas não existe gene que o obrigue a ser um militante social. Karla Sofia Gascón é mau-caráter por ser racista, mas sua identidade sexual não tem nada a ver com o assunto.

Devemos nos lembrar que causas sociais são muito próximas daqueles que sofrem suas consequências. Contudo, pessoas privilegiadas economicamente costumam nascer e viver bastante longe dos problemas causadas por uma sociedade racista. No caso de Karla Sofia Gascón, a mudança de sexo não vem acompanhada com um chip que muda também suas visões de mundo. Certamente, ela não era defensora da religião islâmica e passou a ser crítica após a transição de gênero. As opiniões dela sobre a Academia também não foram forjadas na mesa de cirurgia. Tanto Juan Carlos Gascón quanto Karla Sofia Gascón, muito provavelmente, compartilham das mesmas opiniões. Eu concordo com elas? Claro que não, que fique muito claro.

Decidi trazer esse tema porque ele engloba também as pessoas com deficiência. Em meus 48 anos de vida, sempre procurei fazer as pessoas com deficiência serem vistas como pessoas e não por suas deficiências. Muito frequentemente, sofri na pele a dicotomia “coitadinho” e “herói”. Ao olhar para mim ou qualquer outros dos milhares espalhados pelo Brasil, o primeiro pensamento que vem à mente das pessoas é coitadinho. Ao saber que somos casados, formados em uma universidade e vivemos uma vida plena, apesar da deficiência, o segundo pensamento é herói. Dentro da comunidade de pessoas com deficiência, existem milhares de pessoas maravilhosas, mas existem também muitas Karlas Sofias Gascóns, que olham os outros com desprezo e desrespeito. Boa sorte à Fernanda Torres e a Ainda Estou Aqui. Boa sorte à Karla Sofia Gascón, para que reveja alguns posicionamentos e visões de mundo.

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